O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em recente manifestação exarada por intermédio do Despacho Decisório n. 53/2024/GABIN, assinado por seu Presidente, reacendeu discussão que estava, até então, definida e bem decidida: a questão envolvendo a (des) necessidade de anuência dos órgãos federais de meio ambiente em pedidos de supressão de vegetação do Bioma Mata Atlântica.
A recente decisão exarada no citado despacho conclui pela necessidade de anuência prévia do Ibama para os empreendimentos minerários que envolvam a supressão de vegetação do Bioma Mata Atlântica.
A discussão acerca da necessidade ou desnecessidade da anuência prévia do Ibama – não especificamente para os empreendimentos de mineração – tem raízes profundas, tendo sido objeto de intensos e extensos debates envolvendo a Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA (PFE/IBAMA) e a Consultoria Jurídica do Ministério de Meio Ambiente e, no que concerne à anuência para empreendimentos de mineração, também suscitou controvérsias, inclusive dentro da própria estrutura da Autarquia.
No despacho decisório a controvérsia é marcada e coloca de um lado a Superintendência do IBAMA em Minas Gerais (SUPES-MG) e a Diretoria de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas (DBFLo), que sustentam a necessidade de anuência para os empreendimentos minerários que envolvam supressão de vegetação do bioma protegido, de outro lado, a PFE/IBAMA externa seu entendimento jurídico pela desnecessidade de anuência, tendo como base o entendimento fixado no Parecer nº 00046/2021/CONEP/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU.
Não é objetivo do presente trabalho resgatar todos os pareceres, despachos e manifestações que fundaram a polêmica e, muito menos, resgatar os seus fundamentos para validá-los ou não. Ainda que uma referência ou outra seja necessária, o objetivo tem contornos mais simples e procura evidenciar as razões de decidir utilizadas no citado despacho decisório e apontar os critérios hermenêuticos que deram suporte à decisão.
Nesse caminho, tem-se que o despacho decisório construído sobre, basicamente, sete parágrafos, posiciona-se nos seguintes termos:
7. Desse modo, após ouvidas as áreas técnicas competentes, e pelas razões expostas nas manifestações citadas no item 5 do presente expediente, acompanho o posicionamento da DBFlo e a Supes-MG e decido pela necessidade de anuência prévia do Ibama para os empreendimentos minerários que envolvam a supressão de vegetação no Bioma Mata Atlântica.
No citado item 5 do expediente merece referência o Parecer Técnico nº 14/2021-NUBIO-MG/DITEC-MG/SUPES-MG e a síntese do entendimento nele exposto de que “a dispensa [de anuência] não contribuiria com a proteção que o bioma necessita”, sendo essa, segundo nos parece, a razão de decidir da autoridade máxima do IBAMA.
O parecer técnico que dá suporte a decisão, por sua vez, conclui “diante da contextualização argumentativa e técnica exposta neste documento”, a “indiscutível relevância e pertinência da manutenção da atuação do IBAMA nas análises de anuência de supressão de vegetação em empreendimentos minerários”. Da contextualização argumentativa e técnica merece destaque, para fins de delimitação do racional utilizado para a decisão, o seguinte trecho:
Não é necessário ser operador do direito para entender o alcance da qualidade atribuída pela Constituição da República Federativa Brasil de 1988 ao meio ambiente, como condição imprescindível à “sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Nesse sentido, sua preservação é dever de todos e, sobretudo, daqueles entes públicos constitucionalmente determinados para a consecução desses objetivos. É nesse sentido que o IBAMA e outros entes do SISNAMA foram criados e suas funções definidas pela Constituição e outros instrumentos legais.
Ainda que se fale em instâncias de poder, o caráter coletivo da protetividade ao conjunto dos recursos naturais é de competência coletiva e complementar. Assim, não se mostra possível ou razoável presumir que o assentimento de determinado ente federativo prescindir dessa visão complementar, ou mesmo de caráter suplementar às atividades desse ente. É nesse contexto que o instrumento normativo conhecido como Anuência Prévia para Supressão de Vegetação do Bioma Mata Atlântica se constituiu. Não como um instrumento de conservação em si, mas como um olhar complementar àquele emitido pelos processos de licenciamento, visando objetivo comum: a preservação do bioma Mata Atlântica conciliada com o desenvolvimento sustentável. (Parecer Técnico nº 14/2021-NUBIO-MG/DITEC-MG/SUPES-MG, f.9) (grifos nossos)
Não há dúvidas de que o meio ambiente foi alçado à posição de destaque na Constituição de 1988 (vide art. 225), assim como também não há dúvidas de que ele, mesmo alocado fora do rol de direitos do art. 5º da Carta Constitucional, é Direito Fundamental. O dever de proteção ambiental – também aqui sem qualquer espaço para dúvida – é coletivo e foi expressamente consignado no mesmo art. 225.
Entretanto, a fundamentalidade e dever de proteção que gravita no entorno do meio ambiente ecologicamente equilibrado não podem ser utilizados sem qualquer critério para a justificar a construção de argumentação que se encaixe em toda e qualquer situação.
A interpretação do texto constitucional não é reservada exclusivamente ao operador do direito e isso porque o texto da Constituição é aberto, assim como é aberta a sociedade dos intérpretes da Constituição (Häberle). Exemplo claro dessa abertura se encontra também no art. 225, quando traz a expressão plurívoca “significativa degradação ambiental” (cf. art. 225, §1º, IV). Neste caso, há um leque de legitimados à interpretação do texto constitucional.
O pressuposto ali, entretanto, é a plurivocidade da expressão constitucional que exige interpretação. A questão que se coloca no tema da “anuência para supressão de Mata Atlântica” é um tanto quanto diferente, uma vez que a Lei da Mata Atlântica não confere abertura, segundo nos parece, para tantos debates e interpretações, como aqueles que levaram à lavratura do Despacho Decisório n. 53/2024/GABIN. Esse aspecto, inclusive, foi muito bem colocado no PARECER n. 00046/2021/CONEP/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU quando reconheceu que, pelos critérios da Lei Federal n. 11.428/2006, a atividade de mineração não foi considerada como de utilidade pública ou interesse social e que se submete ao regramento especial estabelecido em dispositivo próprio (vide art. 32) e, por consequência, o regramento geral para anuências, estabelecido no art. 14 e regulamentado no art. 19 do Decreto Federal n. 6.660/2008, não as alcançaria.
O critério hermenêutico é bastante claro e segue a linha de uma interpretação sistemática que conjuga a avaliação de dispositivos de um mesmo diploma normativo para construir, de forma não conflituosa, a melhor interpretação para o tema.
É objetivo comum e dever geral de índole constitucional a preservação do meio ambiente e, em especial, do bioma Mata Atlântica. Não por outro motivo, o Poder Público e, nesse caso, o Legislativo, com o amparo da legitimidade democrática, fez promulgar a Lei Federal n. 11.428/2006, criando um regime jurídico especialíssimo para ações protetivas do bioma.
Estabelecida a lei não é admissível que “se fale qualquer, sobre qualquer coisa” (STRECK) a fim de justificar uma posição que vai de encontro ao texto da lei (e aqui vale lembrar, falando ainda sobre critérios hermenêuticos, que o primeiro limite à interpretação é a literalidade do dispositivo interpretado).
A anuência prévia para supressão de vegetação não é, como afirmado no parecer da Supes MG, um instrumento de conservação em si. Porém, ela também não pode ser um olhar complementar aquele emitido pelos processos de licenciamento ambiental sob pena de malferir novamente a Constituição, quando nela se preveem as regras para o federalismo de cooperação, e a Lei Complementar n. 140/2011, principalmente quando nela se estabelecem as atribuições de todos os entes para o licenciamento ambiental e firma a regra da unicidade do licenciamento (vide art. 13).
Por isso, não é papel do IBAMA lançar um olhar complementar para o licenciamento realizado por outro ente federado. Ao IBAMA compete exercer suas atribuições para o licenciamento ambiental, definidas na lei complementar e regulamentos, e quando não for ele o responsável pela condução do processo, caberá manifestar-se de forma não vinculante, nos prazos e condições procedimentais estabelecidos pelo ente licenciador (vide art. 13, §1º).
O despacho decisório parece querer fazer valer a qualquer custo um entendimento que não se sustenta em critérios seguros e ao amparo de um quadro maior da legislação ambiental. O fundamento de que “a dispensa [de anuência] não contribuiria com a proteção que o bioma necessita” desconsidera os dispositivos da lei da Mata Atlântica e a sistemática nela estabelecida e o “olhar complementar” para o licenciamento fere de morte um conjunto de preceitos e regras que foram fruto de longo tempo de trabalho para que fossem consolidados no sistema normativo ambiental.