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Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 7.776 Minas Gerais

RELATOR : MIN. FLÁVIO DINO
REQTE.(S) : ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – APIB
ADV.(A/S) : MAURÍCIO SERPA FRANÇA
ADV.(A/S) : IORRANNIS LUIZ MOREIRA DA SILVA E OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S) : GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS
PROC.(A/S)(ES) : ADVOGADO-GERAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS

DECISÃO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. DECRETO DO ESTADO DE
MINAS GERAIS Nº 48.893/2024. POPULAÇÕES INDÍGENAS. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA
PRIVATIVA DA UNIÃO. ART. 22, XIV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. CONVENÇÃO Nº 169 DA
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. ART. 6º. CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA – CLPI. NORMA FEDERAL. ARTS. 49, I, E 84, VIII, DA LEI MAIOR. DISCIPLINA RESTRITIVA OPERADA POR DECRETO ESTADUAL. IMPOSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR CONCEDIDA.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em face do “Decreto n.° 48.893/2024, de origem da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e promulgado pelo Governo do Estado de Minas Gerais”, ao fundamento de que o diploma impugnado padece de

ADI 7776 MC / MG

“vícios formais e materiais que violam o artigo 5º, § 2º e § 3º, art. 22, XIV, art. 24, § 1°, art. 37, caput, art. 225, caput, art. 231, caput, § 1°, 2° e 3°, da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como os arts. 1, 6° e 7° da Convenção 169 da OIT”.
A requerente sustenta que o diploma normativo atacado:
“I. Viola a repartição de competências legislativas ao deturpar a competência privativa da União para legislar sobre povos indígenas (art. 22, XIV, da CF);
II. Viola a competência geral da União para legislar sobre normas gerais de direito ambiental, sem que os Estados e Municípios possam atuar de forma a reduzir a proteção ao meio ambiente, em vista à União já ter estabelecido norma que trata sobre consulta a povos indígenas em procedimentos com
considerável impacto ambiental, bem como a imprescindibilidade de preservação de recursos ambientais de terras indígenas (art. 24, § 1°, da CF c/c art. 231, § 1° da CF c/c art. 1° e 7° da Convenção 169 da OIT);
III. Viola o princípio da legalidade na Administração Pública ao promulgar normativo em desacordo à Constituição Federal e à Convenção 169 da OIT;
IV. Viola a autodeterminação dos povos indígenas em se reconhecerem enquanto indígenas ao delimitar que povos indígenas são apenas os reconhecidos pela Funai e, igualmente, excluir das possibilidades de consulta indígenas em contexto urbano (art. 231, caput, da CF e art. 1° da Convenção 169 da OIT);
V. Viola a tradicionalidade da ocupação de terras indígenas ao delimitar que terras indígenas são apenas as demarcadas pela Funai e, igualmente, ao considerar o endereço geodésico como critério suplementar (art. 231, § 1, 2° e 3°, da CF);


ADI 7776 MC / MG

VI. Viola a proteção ofertada constitucionalmente ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, igualmente, ao critério de imprescindibilidade de preservação de recursos ambientais necessários ao bem-estar e reprodução física, e cultural, segundo os usos, costumes e tradições dos povos indígenas, mediante a determinação de considerar apenas 3 quilômetros de faixa de distância para realização do licenciamento ambiental (art. 225, caput, da CF e art. 231, § 1°, da CF);
VII. Viola formalmente o direito de consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas e tradicionais ao regulamentar a consulta prévia por meio de “norma inconsulta”, sem que uma ampla consulta antecedesse a elaboração e promulgação de tal norma, violando o direito à participação e consulta prévia
dos povos (art. 6° e 33 da Convenção 169 da OIT);
VIII. Viola frontalmente e materialmente o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado (CPLI/CLPI) dos povos indígenas ao restringir o direito e introduzir hipóteses em que tal procedimento deixará de ser aplicado (arts. 6° e 7° da Convenção 169 da OIT) no âmbito do licenciamento ambiental;
IX. Viola o critério de especificidade da consulta ao excluir das possibilidades de consulta prévia, livre e informada povos indígenas que já tenham sido consultados por outros órgãos públicos em outros processos de licenciamento ambiental de mesmo objeto (arts. 6° e 7° da Convenção 169 da OIT), e
X. Viola o princípio da boa fé previsto na Convenção 169 da OIT e a afronta a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) ao transferir a obrigação de consultar sobre o ato administrativo exclusiva do Estado às empresas privadas e possibilitar que a consulta seja conduzida
pelo empreendedor em casos de impactos provenientes de projetos desenvolvidos pela iniciativa privada (arts. 6° e 7° da Convenção 169 da OIT).”

ADI 7776 MC / MG

Requer a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a suspensão “dos efeitos do Decreto Estadual n.° 48.893/2024 do Estado de Minas Gerais” e, no mérito, seja declarada a sua inconstitucionalidade.
Examino.
Transcrevo, à integra, o teor do Decreto Estadual nº 48.893, de 11 de setembro de 2024:
“O GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS, no uso de atribuição que lhe confere o inciso VII do art. 90 da Constituição do Estado e tendo em vista o disposto no Decreto Federal nº 10.088, de 5 de novembro de 2019, DECRETA:
Art. 1º – Este decreto dispõe sobre a Consulta Livre, Prévia e Informada – CLPI de que trata o art. 6º da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, promulgada pelo Decreto Federal nº
5.051, de 19 de abril de 2004, e consolidada por meio do Decreto Federal nº 10.088, de 5 de novembro de 2019.
Art. 2º – O licenciamento ambiental, realizado no âmbito do Estado, que, na data de sua formalização, afete povos indígenas, comunidades quilombolas ou povos e comunidades tradicionais, ensejará a realização de CLPI, quando, cumulativamente:
I – tratar-se de:
a) povos indígenas reconhecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas;
b) comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares;
c) povos e comunidades tradicionais certificados pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos

ADI 7776 MC / MG

Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais;
II – estiverem localizados em área na qual haverá o desenvolvimento das atividades passíveis de licenciamento ambiental do empreendimento ou em faixas de restrição estabelecidas no Anexo I da Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015, do Ministério do Meio Ambiente, da
Justiça, da Cultura e da Saúde, quando se tratar de projetos de significativo impacto ambiental, assim considerados pelo órgão ambiental competente, com fundamento em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental – EIARima.
§ 1º – Para fins deste decreto, considera-se:
I – terra indígena: aquela com demarcação promovida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas e homologado por decreto publicado no Diário Oficial da União;
II – território quilombola: aquele que tenha sido reconhecido e tenha seus limites declarados por ato do
Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, publicado no Diário Oficial da União e da unidade federada onde se localiza ou, quando a área for de propriedade do Estado ou dos municípios, por ato da autoridade competente em âmbito estadual ou municipal, nos termos do art. 12 do Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.
§ 2º – Nos casos de povos indígenas ou comunidades quilombolas, cujas terras ou territórios não se enquadrem nas definições trazidas pelo § 1º, e nos casos dos povos e comunidades tradicionais, será considerado o respectivo endereço geodésico para fins de atendimento ao disposto no inciso II do caput.
§ 3º – Para atividade ou empreendimento passível de EIARima que não esteja contemplado no Anexo I da Portaria

ADI 7776 MC / MG

Interministerial nº 60, de 2015, do Ministério do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, será considerada a faixa de 3 km de distância.
§ 4º – Fica dispensada a CLPI aos povos indígenas, comunidades quilombolas ou povos e comunidades
tradicionais que na data da formalização do licenciamento ambiental, alternativamente:
I – encontrem-se em área urbana consolidada, nos termos do inciso XXVI do art. 3º da Lei Federal nº 12.651, de 25 de maio de 2012, desde que a atividade ou empreendimento não esteja dentro dos limites de sua terra ou território;
II – já tenham sido consultados por órgão municipal, estadual, ainda que de outro ente federado, ou órgão federal, em licenciamento ambiental de mesmo objeto e sem alterações que os afetem.
Art. 3º – A comprovação de realização da CLPI será exigida:
I – anteriormente à decisão pela autoridade competente sobre o licenciamento ambiental, nos processos instruídos com EIA-Rima;
II – no momento de formalização de processos administrativos de licenciamento ambiental não instruídos com EIA-Rima.
Art. 4º – A CLPI poderá ser acompanhada pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais.
Art. 5º – A CLPI não constitui, nem se confunde com audiências públicas ou outras formas de participação popular.
Art. 6º – A realização de CLPI compete:
I – à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social –

ADI 7776 MC / MG

Sedese, quando os possíveis impactos resultarem de processos de licenciamento de competência do Poder Público estadual;
II – ao empreendedor, no caso de possíveis impactos provenientes de projetos desenvolvidos pela iniciativa privada.
§ 1º – A realização da consulta será de responsabilidade do delegatário, quando o empreendimento pretendido for resultante de concessão de bem ou serviço público.
§ 2º – A Sedese emitirá orientações acerca da execução da CLPI.
Art. 7º – O disposto neste decreto não se aplica aos processos de licenciamento ambiental formalizados
anteriormente à data de sua publicação, observado o art. 17 do
Decreto nº 47.383, de 2 de março de 2018.
Parágrafo único – O responsável por consulta iniciada antes da data de publicação deste decreto poderá optar por adequá-la ao disposto neste decreto.
Art. 8º – Este decreto entra em vigor na data de sua publicação.”
Da leitura do diploma atacado, verifico que o Poder Executivo Estadual, no intuito de disciplinar o instituto da “Consulta Livre, Prévia e Informada – CLPI”, para fins de licenciamento ambiental, culminou por ingressar em matéria cuja competência para dispor é reservada pela Carta Política de forma privativa à União, nos exatos termos do art. 22, XIV, verbis:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XIV – populações indígenas;”


ADI 7776 MC / MG

Exemplificam o indevido disciplinamento, pelo Estado de Minas Gerais, de tema reservado pela Lei Maior ao ente central os conceitos gizados no decreto estadual acerca do que se deve entender por “povos indígenas” e “terra indígena”.
Corrobora o entendimento de que é vedado aos demais entes federados legislar sobre populações indígenas a decisão desta Suprema Corte na ADI 1.499, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, verbis:
“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 300 da Constituição do Estado do Pará e Lei Complementar 31, do mesmo Estado. 3. Populações indígenas. 4. Art. 22, XIV, da Constituição Federal. 5. Matéria reservada à competência privativa da União. 6. Arts. 129, V, e 231 da Constituição. 7. Defesa dos direitos e interesses das populações indígenas. Função atribuída ao Ministério Público Federal. 8. Art. 128, § 5º,
II, “d”, da Constituição. 9. Vedação de exercício de outra função pública por membro do Ministério Público. 10. Ação julgada procedente.” (ADI 1499, Tribunal Pleno, julgado em 17-09-2014,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-223 DIVULG 12-11-2014 PUBLIC 13-11-2014 – destaquei)

Não bastante, a Convenção nº 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais – diploma cujo art. 6º consagra o instituto da Consulta Livre, Prévia e Informada – CLPI -, ratificada pelo Brasil e a qual esta Casa já
reconheceu hierarquia de norma supralegal, por versar sobre direitos humanos, consubstancia norma federal que não pode ser restringida por decreto estadual. Nessa linha, a ADC 39, em que Relator o Ministro Dias Toffoli:

“EMENTA Ação declaratória de constitucionalidade. Decreto nº 2.100, de 20 de dezembro de 1996. Denúncia do Estado brasileiro da Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). […] 3. O teor do art. 49, inciso I, e do art. 84, inciso VIII, da Constituição Federal indica uma necessária conjugação de vontades para a adesão do Estado


ADI 7776 MC / MG

Brasileiro aos termos de um tratado internacional, ou seja, requer uma convergência das competências do presidente da República, a quem cabe celebrar o acordo, e do Congresso Nacional, que exerce função de controle e fiscalização, autorizando sua ratificação pelo chefe do Poder Executivo (Precedente: ADI nº 1.480/DF-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 18/5/01). […] 5. Uma vez incorporados ao
direito interno, os tratados passam a contar com força de lei ordinária federal, ressalvados os tratados que versam sobre direitos humanos, os quais passam a ter natureza supralegal ou até mesmo constitucional, caso observem o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88. […]” (ADC 39, Tribunal Pleno, julgado em 19-06-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 17-08-2023 PUBLIC 18-08-2023 – destaquei)

No plano das relações internacionais, consta do rol das competências privativas do Presidente da República “celebrar tratados, convenções e atos internacionais” (art. 84, VIII), bem como, e com exclusividade, competir ao Congresso Nacional sobre eles “resolver definitivamente” (art. 49, I) – exata hipótese da Convenção nº 169 da OIT, cujo procedimento constitucional de internalização se operou por meio do Decreto Legislativo nº 143/2002 e do Decreto Federal nº 5.051/2004.
Neste passo, descabe aos demais entes federados legislar de modo a limitar o alcance na norma internacional incorporada ao direito pátrio.
O decreto estadual sob análise estabelece não somente hipóteses de dispensa da CLPI, como também impõe o preenchimento de determinados requisitos à sua realização, de modo que o instituto da
consulta e, por conseguinte, a Convenção nº 169 da OIT, nos moldes pretendidos pelo diploma impugnado, têm seus alcances diminuídos.
Isso parece ultrapassar as fronteiras de atribuições de um ente subnacional – relevante, não há dúvida, mas destituído de soberania.
À luz dessas premissas, em juízo provisório, próprio das tutelas de urgência, julgo demonstrado o fumus boni juris na espécie.


ADI 7776 MC / MG

A concessão de licença ambiental com amparo em decreto estadual que disciplina tema reservado à União pela Carta Magna, assim como dispõe sobre Consulta Livre Prévia e Informada em descompasso com a Convenção nº 169 da OIT, enseja danos de difícil reparação ou irreversíveis, de modo que se evidencia o periculum in mora.
Ante o exposto, com fundamento no art. 10 da Lei nº 9.868/1999 e no art. 21, V, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, concedo a medida cautelar, ad referendum do Plenário, para suspender a eficácia do Decreto nº 48.893/2024 do Estado de Minas Gerais.
Solicitem-se informações ao Governador do Estado de Minas Gerais e, após, dê-se vista ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República.

À Secretaria Judiciária.

Publique-se.

Brasília, 24 de janeiro de 2025.

Ministro FLÁVIO DINO
Relator
Documento assinado digitalmente

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