Tiago de Mattos.
O papel das tendências regulatórias globais na evolução normativa do Direito do Mineração no Brasil.
No admirável artigo “Legal Reform in Mining: past, presente and future”, publicado em 2005 no livro “International and Comparative Mineral Law and Policy: trends and prospects”[1], John P. Williams faz um extenso estudo das ondas reformistas que alteraram a legislação mineral, nas últimas décadas, mundo afora. Mais do que isso, o autor disseca a estrutura das normas em determinados períodos, aponta suas fragilidades, os novos objetivos buscados à época e as soluções implementadas para alcançá-los.
O texto demonstra, com lucidez ímpar, a influência das tendências globais nas mudanças locais. Desmistifica a ideia de política mineral baseada exclusivamente em fatores domésticos, bem como acende uma lâmpada nos regulamentos de cada jurisdição, atos que, examinados em conjunto, trazem à luz a confirmação da tendência de reformas em blocos de assunto, de tempo e de espaço. É impossível resistir à tentação de fazer um paralelo entre esse estudo e as mudanças normativas na mineração brasileira.
Em perspectiva histórica, o texto registra os primórdios do Direito da Mineração no período romano, ilustrado pelos leilões de áreas na Península Ibérica. Avança nas regulações europeias pós-cristianismo – com registro dos tratados entre os celtas e os demais povos da Europa central em relação ao free mining – e chega à realidade da América Latina em formação, influenciada pelas ordenações espanholas, que já àquela época tentavam equilibrar forte tributação e incentivos para o desenvolvimento de minas.
Saltando ao pós-guerra, as proximidades globais e brasileiras ganham tração. Fatores como a necessidade de desenvolvimento de uma indústria nacional, a ampliação de receitas para os cofres públicos e a desconfiança frente ao controle estrangeiro levam a um período de estatização da mineração.
Essa mudança dá-se por meio de participações obrigatórias do Estado em determinados projetos minerários (Botswana, Indonésia, Serra Leoa), nacionalização (no caso da Zâmbia, do cobre) e criação de empresas de mineração estatais (National Mineral Development Corporation – NMDC, na Índia). Semelhanças com a criação e desenvolvimento da então Companhia Vale do Rio Doce, a partir de 1942, ou com a saga das caducidades das concessões enfrentada pela Hannah Mining no desenvolvimento dos projetos de minério ferro em Minas Gerais, nos anos 60?
Os resultados dessa reforma estatizante são conhecidos: baixa cultura corporativa, vulnerabilidade das empresas às pressões políticas, exposição pública a riscos essencialmente privados e falta de investimentos, levando à baixa lucratividade.
Esse cenário levou a uma nova onda reformista global no fim da década de 80 e início dos anos 90. Acionadas pelo gatilho do fim do bloco soviético, que levou à falência do modelo de planejamento econômico central, e pelas contribuições do braço financeiro da Organização das Nações Unidas – ONU (Fundo Monetário Internacional – FMI e Banco Mundial), as mudanças buscaram atrair investimentos privados, reduzir as ineficiências tributárias, dar respostas de proteção ambiental à sociedade e aumentar a competitividade de cada país no comércio global da mineração.
Daí a criação de novas regras relacionadas ao security of tenure (é nesse cenário que o Peru adota, no seu então recém-promulgado Código de Mineração de 1991, o sistema único de concessões para a pesquisa e para a lavra), da ampliação da autorregulação (experiência vivida na Nova Zelândia), da transição do Estado de figura de minerador para a de regulador (casos clássicos da Bolívia e Cazaquistão) e da ampliação de regras de responsabilidade ambiental (como o Environmental Protection Act do Reino Unido, de 1990).
Fazendo o recorte para a realidade brasileira, é nesse contexto que a Emenda Constitucional nº 06/95 retira as restrições para o investimento estrangeiro na mineração. É quando a Lei 9.314/96 altera o Código de Mineração para, além de simplificá-lo, estabelecer a dinâmica objetiva dos requisitos de manutenção das Autorizações de Pesquisa e de sua transição para a fase de lavra, incluindo a ampliação do teto do prazo – de 2 para 3 anos, prorrogáveis – e da possibilidade de lavra limitada na fase de pesquisa, o que viabilizaria, em seguida, a criação da Guia de Utilização. A lista é longa: é o período de privatização, além da Vale, da Mineração Caraíba e da Ultrafértil, entre outras; é quando as exportações, por meio da Lei Complementar nº 87/1996, deixam de ser tributadas; é o cenário de promulgação da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998).
Essas mudanças repercutiram no crescimento exponencial do fluxo de investimentos e comércio internacional de commodities minerais durante a segunda década dos anos 90 e início dos anos 2000.
Mas não previam as respostas aos desafios seguintes, especialmente em quatro frentes: demandas sociais frente à mineração, busca pela transparência na forma de outorga dos consentimentos para as empresas minerarem, eficiência administrativa no cumprimento da regulação e distribuição de renda/definição de ordenamento do espaço territorial entre poderes centrais e locais.
Por ser de 2005, o texto não consegue apontar o resultado das reformas criadas a partir do cenário acima. A indicação das tendências, no entanto, demonstra visão acuradíssima do autor.
O texto divide a análise do prognóstico em três itens: (a) aqueles em que parecia haver consenso entre os Estados; (b) os que indicavam divergência; e (c) os que ainda permaneciam vagos.
Entre os consensuais, estavam a necessidade de melhora dos cadastros e registros de dados oficiais sobre títulos minerários, facilitando a identificação de áreas potenciais e acompanhamento de seu desenvolvimento pelos investidores; e a necessidade de adesão, em larga escala, de boas práticas internacionais da atividade mineral como forma de fortalecimento dos padrões da indústria.
A resposta brasileira alinhou-se a essas previsões.
Na primeira frente, o nascimento, ainda que tardio, da Agência Nacional de Mineral – ANM , bem como os anteriores vários esforços de qualificação do serviço prestado ao minerador, são a prova viva: a criação e aperfeiçoamento do Cadastro Mineiro, do Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração – SIGBM e do Sistema de Informações Geográficas da Mineração – a SIGMINE, inclusive com sobreposição de camadas ambientais e fundiárias; a transição para os processos eletrônicos; e a recente Resolução nº 22/2020, que trata das aprovações administrativas por decurso e tempo.
Sobre o segundo item, o recente esforço do International Council on Mining and Metals – ICMM para criar um novo padrão de gestão e governança das barragens de rejeitos, com resposta positiva de vários Estados – inclusive do Brasil – e as ações da Organisation for Economic Cooperation and Development – OECD para orientar práticas adequadas de combate à erosão das bases tributárias e transferência de lucros de países mineradores para jurisdições de tributação vantajosa, também em debate no país, exemplificam a tendência.
Em relação aos itens de dissenso, a previsão também é certeira.
O autor cita três fatores de potencial conflito: o avanço nos debates sobre quem poderá ser titular de consentimentos minerários, em razão do histórico de especulação, fruto da política de flexibilização máxima dos capacitados para onerarem áreas minerárias; a divergência sobre a adoção de modelos globais ou locais para certificação de recursos e reservas minerais; e o debate sobre a calibragem da divisão da renda mineral, com ampliação da participação financeira do Estado no resultado das operações.
Também nesses pontos a análise do autor encontra resultado no debate brasileiro. A especulação negativa, que levava à vergonhosa fila nas portas do então Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, foi indiretamente enfrentada por mudança normativa, especialmente pelas novas regras trazidas pelo art. 26 do Regulamento do Código de Mineração de 2018, reduzindo as hipóteses de área livre. Todavia, ainda há debates isolados sobre a titularidade por consórcios, associações – inclusive religiosas – e sindicatos, ainda que a procuradoria jurídica do DNPM já tenha enfrentado a questão no passado.
A Lei nº 13.575/2017 atribuiu à ANM a competência para normatizar o sistema brasileiro de certificação de recursos e reservas, e, mesmo com a indicação do prazo de um ano para que essa medida fosse tomada, ainda não se chegou a um consenso.
Por último, permanecem as disputas tributárias, inclusive com assunção de protagonismo dos estados, por meio da criação das inconstitucionais taxas estaduais sobre recursos minerais – TFRMs, além da promulgação da Lei nº 13.540/2017, aumentando a CFEM; e do perigoso debate, no Congresso Nacional, sobre uma suposta volta da tributação das exportações minerais.
Por último, o autor também acerta na definição de itens que ainda permanecem incertos.
Indica, entre outros, a incerteza sobre os limites dos poderes locais e centrais a respeito das limitações de uso do território para a atividade mineral (caso clássico das disputas envolvendo Unidades de Conservação de Proteção Integral, especialmente municipais, e o decaimento de títulos minerários outorgados por ente federal[2]), bem como a dificuldade de se estabelecer, com precisão, o caminho para a regulação da mineração em terras indígenas – lembrando que, além do Projeto de Lei nº 191/2020, apresentado pelo atual governo no início do ano, tramitam no Congresso Nacional, entre originários e apensados, quase vinte outros projetos, desde os mais liberalizantes até os mais restritivos.
A perspicácia de John P. Williams para interpretar os fatores globais que levam às reformas minerárias é digna de nota. A associação do estudo e as projeções do autor à realidade brasileira comprovam a inserção do Brasil, proposital ou não, no contexto internacional do debate da regulação da atividade mineral.
Nesse sentido, nada mais conveniente do que aproveitar a visão do autor e tornar semelhante algo que hoje é uma diferença brutal entre o avanço das reformas globais e o Brasil: a integração da fronteira para o desenvolvimento de projetos minerários, item indicado por ele como apto a mudanças relevantes.
Se até a Argentina e o Chile, países com histórico não tão amigável, assinaram o Tratado entre la República de Chile y la República Argentina sobre Integración y Complementación Minera, que estabelece a regulação de atividades cross-border em suas fronteiras – o interessantíssimo, porém ambientalmente finado, Projeto Pascua-Lama, é uma ótima ilustração do resultado –, por que não criarmos condições semelhantes?
Para isso, teremos que superar uma de nossas jabuticabas normativas: a afonsina limitação ao controle estrangeiro de empresas de mineração na faixa de fronteira.
Para uma missão dessas, só chamando John P. Williams para escrever um artigo exclusivo.
[1] BASTIDA, Elizabeth; WAELDE, Thomas W.; WARDEN-FERNÁNDEZ, Janeth (Ed.). International and comparative mineral law and policy: trends and prospects. Kluwer Law International BV, 2005.
[2] Assunto desta coluna há cerca de um mês: <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mineral/a-genialidade-de-olafur-eliasson-e-o-decaimento-de-titulos-minerarios-26072020>.